O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar (Discurso de Lord Chatham no Parlamento Britânico, citado pelo Min. Alexandre de Moraes. STF, HC 169.788)
Da invasão de domicílio
A Constituição Federal em seu art. 5º estabelece:
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial (BRASIL, 1988)
A violação de domicílio fora dos preceitos constitucionais constitui-se, criminalmente, em ilícito considerado de menor potencial ofensivo (Lei nº 9.099/95), com pena de detenção de um a três meses, ou multa (art. 150 do Código Penal).
Caso a invasão seja perpetrada por agente público, o crime será de abuso de autoridade caso configuradas as condições da Lei nº 13.869/2019. Nesse caso, as penas serão significativamente mais severas:
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem:
I – coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;
II – (VETADO);
III – cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).
§ 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.
Não se desconhece, além das sanções criminais, a possibilidade de que os agentes públicos respondam, concomitantemente e pelo mesmo fato, a eventuais sanções disciplinares e indenizatórias resultantes da invasão.
São essas consequências possíveis aos agentes públicos, portanto, que tornam importante conhecer as condições de legalidade de uma eventual entrada forçada no domicílio, principalmente nos casos de flagrante delito.
Ademais, tratando-se de invasão domiciliar ilícita, as provas resultantes da entrada forçada serão consideradas inválidas e, nesses termos, desentranhadas do processo, por inservíveis, de acordo com o Código de Processo Penal (CPP):
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.
§ 4o (VETADO)
§ 5º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão.
Da configuração jurisprudencial da invasão de domicílio nos casos de flagrante delito
Durante muito tempo, prevaleceu a tese de que, havendo flagrante confirmado no interior do domicílio, a entrada forçada – em regra, pela polícia – estaria legitimada. Disso, algumas consequências:
- Havia risco de entrada forçada – ainda que baseada em informações confiáveis e de fontes certas – de não constatação do flagrante delito in casu e eventual possibilidade de responsabilização do agente policial;
- Diante da necessidade de constatação do flagrante para legitimar a entrada, o invasor poderia buscar – a qualquer custo – situações flagranciais que o eximiriam de qualquer responsabilidade.
Obviamente, nenhuma das situações, efetivamente, satisfaz a regra da preservação de inviolabilidade do domicílio e a exceção de eventual entrada forçada sob a a alegação da ocorrência de delitos no interior do imóvel.Imagine-se, por exemplo, a invasão de um domicílio baseada, apenas, em uma denúncia anônima.
A rigor, qualquer domicílio poderia ser invadido pela polícia que, para se desincumbir de responsabilidades, deveria concretizar um flagrante delito no interior de imóvel.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de repercussão geral, decidiu pela necessidade prévia de justa causa que justifique a entrada forçada em domicílio fixando a seguinte tese na análise do Tema 280:
A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.
No acórdão do leading case do qual resultou a tese relativa ao Tema 280, foram detalhados parâmetros – ainda que vagos – da necessidade de justa causa para a entrada forçada em domicílio no caso de flagrante delito. Nesse sentido:
Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo[…] 5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. 7. Caso concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao recurso. (STF – RE: 603616 RO, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 05/11/2015, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 10/05/2016)
O problema da tese resultante do Tema 280, entretanto, parece residir na conceituação vaga e indeterminada do que seja “justa causa”. A rigor, é o judiciário – em regra e definitivamente, os tribunais superiores -, que dirá em cada caso se há ou não justa causa.
Não se pode desconhecer entretanto, que o próprio Tema 280 estabelece a possibilidade concreta de responsabilização disciplinar, civil e penal do agente, além da respectiva nulidade dos atos praticados.
Tema 280 e as decisões do STJ
A partir daí, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – principalmente através das decisões da sexta turma – passou a julgar diversas situações específicas de sobre a legitimidade da entrada forçada em domicílio, decidindo – em várias oportunidades – pela ausência de justa causa no caso concreto:
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INVASÃO DE DOMICÍLIO PELA POLÍCIA. NECESSIDADE DE JUSTA CAUSA. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO DO AGENTE. RECURSO NÃO PROVIDO. [… ] 3. O ingresso regular de domicílio alheio depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, somente quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio. […] 11. Na hipótese sob exame, o acusado estava em local supostamente conhecido como ponto de venda de drogas, quando, **ao avistar a guarnição de policiais, refugiou-se dentro de sua casa, sendo certo que, após revista em seu domicílio, foram encontradas substâncias entorpecentes (18 pedras de crack). Havia, consoante se demonstrou, suspeitas vagas sobre eventual tráfico de drogas perpetrado pelo réu, em razão, única e exclusivamente, do local em que ele estava no momento em que policiais militares realizavam patrulhamento de rotina e em virtude de seu comportamento de correr para sua residência, conduta que pode explicar-se por diversos motivos, não necessariamente o de que o suspeito cometia, no momento, ação caracterizadora de mercancia ilícita de drogas. 12. **A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o consentimento do morador – que deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial.** […] 14. Em que pese eventual boa-fé dos policiais militares, não havia elementos objetivos, seguros e racionais, que justificassem a invasão de domicílio. Assim, como decorrência da Doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada (ou venenosa, visto que decorre da fruits of the poisonous tree doctrine, de origem norte-americana), consagrada no art. 5º, LVI, da nossa Constituição da Republica, **é nula a prova derivada de conduta ilícita – no caso, a apreensão, após invasão desautorizada do domicílio do recorrido, de 18 pedras de crack -, pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de drogas**. 15. Recurso especial não provido, para manter a absolvição do recorrido. (STJ – REsp: 1574681 RS 2015/0307602-3, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 20/04/2017, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2017)
Variedade de casos analisados pelo STJ e a (in)existência de justa causa
Pode-se indicar inúmeras outras decisões relacionadas à constatação ou não de justa causa no caso concreto.Em um dos julgados as fundadas razões decorreram dos gritos ouvidos do lado de fora do imóvel com a chegada da polícia:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. CONDENAÇÃO RATIFICADA EM SEDE DE APELAÇÃO. NULIDADE. ALEGADA ILICITUDE DAS PROVAS. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. INOCORRÊNCIA. EXISTÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. [..] 4. Na hipótese, o contexto fático delineado nos autos evidenciou existirem fundadas suspeitas para que a autoridade policial realizasse a vistoria no imóvel, tendo em vista a **denúncia anônima que havia indicado, com precisão e riqueza de detalhes**, o endereço em que estariam sendo comercializados os entorpecentes, aliada ao fato de que os policiais civis, do lado de fora da casa, chamaram o nome de um dos agravantes, o qual saiu no corredor e, ao perceber a presença policial, **gritou as seguintes palavras: “Molhou! Molhou! Joga fora”**. Diante da **fundada suspeita**, os policiais adentraram ao imóvel e surpreenderam o agravante Felipe, no banheiro, quando dispensava parte da droga no vaso sanitário, e localizaram o agravante Marcos, no último quarto do imóvel, no qual havia mais drogas e petrechos usados no fracionamento e embalo de entorpecentes.(grifou-se) [(STJ – AgRg no HC: 741190 SP 2022/0138899-8, Data de Julgamento: 24/05/2022, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2022)](https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1519126746/inteiro-teor-1519126770)
Em outro caso, o STJ entendeu que a fuga ao avistar polícia não justifica invasão de domicílio:
[…] os policiais estavam em patrulhamento de rotina, quando avistaram o paciente caminhando em via pública. O paciente, por sua vez, ao avistar os policiais,empreendeu fuga para sua residência, sendo por eles perseguido. Diante da suspeita de que algum crime estava sendo cometido no interior daquele imóvel, os milicianos adentraram no local e lograram apreender 2,57g de cocaína, 55g de maconha e 22 micropontos de LSD. Como se percebe dos fundamentos apresentados pelo Tribunal a quo, as fundadas razões para o ingresso no imóvel teriam sido a natureza permanente do tráfico e a fuga do agente ao avistar a Polícia. […] Os únicos elementos de prova indicados na sentença e no acórdão quanto à materialidade delitiva são justamente os decorrentes da busca domiciliar ilícita. Não remanescem, portanto, quaisquer provas legalmente válidas para embasar a condenação do réu, que deve ser absolvido. [(STJ – HC: 811052, Relator: RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: 11/04/2023)](https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1808025862/inteiro-teor-1808025881)
Em outra decisão do STJ, asseverou-se que denúncia anônima, por si só, não legitima invasão policial em casa:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ILICITUDE DAS PROVAS. INVASÃO DE DOMICÍLIO. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. DENÚNCIA ANÔNIMA. PERMISSÃO DE ENTRADA NÃO COMPROVADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ILEGALIDADE. 1. Conforme entendimento firmado por esta Corte, a mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio sem autorização judicial, pois ausente, nessas situações, justa causa para a medida. […] 3. A suposta permissão para ingresso domiciliar, proferida em clima de estresse policial, não pode ser considerada espontânea, a menos que tivesse sido por escrita e testemunhada, ou documentada de outra forma. Afigura-se ilícita a prova obtida mediante violação de domicílio desprovida de fundadas razões. 4. Sem a indicação de dado concreto sobre a existência de justa causa para autorizar a medida invasiva de ingresso no domicílio, deve ser reconhecida a ilegalidade por ilicitude da prova, bem como das provas dela derivadas, nos termos do art. 157, caput e § 1º, do CPP. […] 6. Habeas corpus concedido. Restabelecimento da sentença absolutória. Expedição de alvará de soltura, se por outro motivo não estiver o agente preso. [(STJ – HC: 696510 PE 2021/0310467-5, Relator: Ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), Data de Julgamento: 14/12/2021, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/12/2021)](https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1480039414)
Em resumo, a existência de justa causa aptas a permitir a entrada legítima no domicílio não foi reconhecida nos seguintes casos, dentre outros: a ação de cão farejador sem prévia investigação, perseguição a veículo, ter fama de traficante e atitude suspeita e demonstrar nervosismo.
Por outro lado, a entrada forçada foi considerada legítima pelo STJ, por exemplo, nos seguintes casos: quando ninguém mora no local, se há denúncia de disparo de arma de fogo na residência ou flagrante de posse de arma na frente da casa, se é feita para encontrar arma usada em outro crime — ainda que por fim não a encontre —, ou se o policial, de fora da casa, sente cheiro de maconha.
Habeas Corpus nº. 169.788 e a fundada suspeita como justa causa para entrada forçada em domicílio
O STF analisa o Habeas Corpus nº. 169.788 impetrado contra decisão monocrática do Min. Felix Fischer, do STJ. O remédio constitucional trata de um caso em que policiais militares, durante o patrulhamento, suspeitaram de um sujeito que correu para dentro de casa ao ver a viatura. Desconfiados, os policiais invadiram a residência e encontraram 247g de maconha. Ainda que haja certo conflito de versões entre policiais e acusado, o fato é que o STJ já considerou situações idênticas como ilegais, por inexistência de fundadas razões para o ingresso domiciliar.
No STF – onde o tema chega pela primeira vez -, o relator Min. Edson Fachin considerou a entrada ilícita, assim como os Ministros Luís Roberto Barroso, Carmem Lúcia e Rosa Weber.
Contudo, em voto divergente, o Min. Alexandre de Moraes sustentou não haver ilegalidade na ação dos policiais uma vez que o crime de tráfico de drogas consistente na conduta de “ter em depósito” é permanente, tendo a sua consumação prolongada no tempo – o que permite a busca domiciliar. Nesse sentido, importante a análise de aspectos do voto divergente:
No caso de que se trata, as fundadas razões que recomendaram o ingresso dos policiais no local dos fatos podem ser extraídas da denúncia, a saber:
“Policiais militares realizavam patrulhamento de rotina no local quando avistaram o denunciado em frente ao imóvel e, ao notar a aproximação da viatura, em atitude suspeita, correu para seu interior. Por esta razão, os policiais decidiram averiguar. Após o denunciado ter franqueado a entrada no local, os policiais encontraram no interior da residência, em cima do sofá, uma porção da droga, e o restante na cômoda do quarto. Indagado informalmente, admitiu ser traficante de drogas”.
Nesse contexto, em se tratando de delito de tráfico de drogas praticado, em tese, na modalidade “ter em depósito”, a consumação se prolonga no tempo e, enquanto configurada essa situação, a flagrância permite a busca domiciliar, independentemente da expedição de mandado judicial, desde que presentes fundadas razões de que em seu interior ocorre a prática de crime, como ocorreu na hipótese. A justa causa, portanto, não exige a certeza da ocorrência de delito, mas, sim, fundadas razões a respeito. Essa é a orientação que vem sendo adotada pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL em julgados recentes. […] No caso concreto, conforme narrado, o ingresso dos agentes de segurança pública no domicílio foi devidamente justificado, tendo em vista que o paciente, ao visualizar a viatura policial, saiu correndo em atitude suspeita para o interior de sua residência. Desse modo, não há, neste juízo, qualquer ilegalidade na ação dos policiais militares, pois as fundadas razões para a entrada dos policiais no domicílio foram justificadas neste início de persecução criminal, em correspondência com o entendimento da CORTE no [RE 603.616/RO, Rel. Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, DJe de 10/5/2016](https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5667710)
Acompanharam o voto divergente os Ministros Dias Tóffoli e Cristiano Zanin.
As repercussões de uma possível mudança de jurisprudência
O Min. Alexandre de Moraes sempre demonstrou ser crítico à jurisprudência construída pelo STJ nos casos de entrada forçada em domicílio (RE 1447045 / SP; RE 1447047/SC; RE 1447289 / RS). Em decisão recente (Ag. Reg no RE nº 1.447.374/MS), o Ministro derrubou acórdão da 6ª Turma do STF e manteve válidas as provas contra um homem também acusado de tráfico de drogas.
Em suma, alegou que o STJ “teria criado uma uma nova exigência, diligência investigatória prévia — para a plena efetividade dessa garantia individual, desrespeitando o decidido por essa Suprema Corte.”
Diversas entidades ingressaram no julgamento do habeas corpus como amici curiae – Associação Nacional da Advocacia Criminal (ANACRIM), a Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (EDUCAFRO), o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (IDAFRO) e a Associação de Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos -, demonstrando preocupação com a possibilidade de mudança da jurisprudência – até então desenhada no STJ – em razão do julgamento do HC 169.788/RO.
Para o [IBCCrim], por exemplo: (https://ibccrim.org.br/noticias/exibir/9164)
[…] na hipótese vertente, é incontornável a conclusão de que a busca domiciliar foi empreendida sem autorização do morador, à revelia de mandado judicial, e divorciada de qualquer situação de flagrância. […] eventuais elementos de prova recolhidos a posteriori não têm o condão de conferir, de forma “retroativa”, legalidade à medida ilegítima, já que utilizar-se das próprias provas ilícitas para conferir legalidade à ilegal diligência de busca que as originou seria, no mínimo, paradoxal. Assim, admitir-se tal “convalidação” de atos jurídicos a partir de seus resultados equivaleria a subverter por completo o sentido de nossas regras legais. Seria, com efeito, admitir que os fins justificam os meios – e ponto final. […] diante de tudo quanto exposto, é que se requer – para que seja possível ao menos começar a acertar as contas com a injustiça epistêmica, e, porque não dizer, social – a concessão da ordem do presente habeas corpus, a fim de que seja reconhecida a nulidade da incursão domiciliar realizada à revelia de mandado judicial e da anuência do morador, bem como dos elementos de prova a partir dela obtidos.
Conclusão
A invasão de domicílio, principalmente aquelas realizadas por agentes públicos no exercício de suas funções, sempre gerou discussões e controvérsias.
Resta, contudo, ao Poder Judiciário dirimir essas dúvidas, uniformizando entendimentos e tornando sua jurisprudência estável, íntegra e coerente (art. 926 do CPC)
Trata-se de tema relevante uma vez que, de um lado, tem-se a possibilidade de sanções injustas a servidores públicos que – fora do aconchego do ar condicionado -, são instados a tomar decisões rápidas e, na grande maioria dos casos, objetivando o bem comum e a preservação da ordem pública.
Do outro lado estamos todos nós, cidadãos, que exigimos a preservação da inviolabilidade do domicílio, como regra, observados como exceção os permissivos constitucionais.
Em suma: não se deve buscar segurança pública a qualquer custo; contudo, a casa não pode se transformar em asilo inviolável de malfeitores e infratores da lei.
Há que se aguardar a melhor decisão do STF a fim de equalizar, satisfatoriamente, os interesses jurídicos envolvidos.
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