1. Introdução
O processo disciplinar conduzido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) desempenha um papel fundamental na preservação da ética e da moralidade no exercício da advocacia. Entre as etapas que compõem esse procedimento, o juízo de admissibilidade destaca-se por determinar se uma denúncia ou representação apresenta os requisitos necessários para ser convertida em processo disciplinar.
A análise preliminar, realizada com base em critérios legais e éticos, busca assegurar que somente os casos devidamente fundamentados avancem, promovendo a proteção dos profissionais contra acusações infundadas e garantindo o devido processo legal.
2. Dos requisitos da representação no processo disciplinar da OAB
No processo ético disciplinar da OAB, a representação constitui-se em mera notícia do fato tido por transgressional e, nesses termos, deve ser analisada pela OAB, órgão censor ético da prática advocatícia nos termos do EAOAB:
Art. 72. O processo disciplinar instaura-se de ofício ou mediante representação de qualquer autoridade ou pessoa interessada.
§ 1° O Código de Ética e Disciplina estabelece os critérios de admissibilidade da representação e os procedimentos disciplinares. (grifou-se)
O CEDOAB exige que o relator observe a existência dos critérios de admissibilidade antes de propor a instauração ou arquivamento da representação:
Art. 58. Recebida a representação, o Presidente do Conselho Seccional ou o da Subseção, quando esta dispuser de Conselho, designa relator, por sorteio, um de seus integrantes, para presidir a instrução processual.
[…]
§ 3º O relator, atendendo aos critérios de admissibilidade, emitirá parecer propondo a instauração de processo disciplinar ou o arquivamento liminar da representação […] (grifou-se)
Por sua vez, são critérios de admissibilidade de uma representação, segundo o CEOAB:
Art. 57. A representação deverá conter:
I – a identificação do representante, com a sua qualificação civil e endereço;
II – a narração dos fatos que a motivam, de forma que permita verificar a existência, em tese, de infração disciplinar;
III – os documentos que eventualmente a instruam e a indicação de outras provas a ser produzidas, bem como, se for o caso, o rol de testemunhas, até o máximo de cinco;
IV – a assinatura do representante ou a certificação de quem a tomou por termo, na impossibilidade de obtê-la. (grifou-se)
Constata-se, nesses termos, que o mero recebimento e protocolo de uma representação não implica em imediata e inequívoca instauração do processo disciplinar. Não estando a representação consubstanciada por provas idôneas e aptas à instauração de processo disciplinar, indispensável a realização de diligências pela OAB.
De modo mais claro, o Regimento Interno do TED/SP:
Art. 48. Recebida a representação, ela será autuada, nomeando-se Relator, Assessor ou membro da Comissão de Ética e Disciplina para, atendendo aos critérios de admissibilidade, emitir parecer no prazo de 30 (trinta) dias sob pena de redistribuição do feito pelo Presidente da Turma Disciplinar, no qual será proposto o arquivamento liminar da representação, quando se constatar absoluta ausência dos pressupostos de admissibilidade, ou a instauração de processo disciplinar.
Parágrafo único. Antes da elaboração do parecer, o feito poderá ser convertido em diligência para:
I – determinar que, no prazo de 15 (quinze) dias:
a) a representação seja aditada;
b) o representante promova a juntada de documentos que porventura sejam necessários à apreciação da representação;
II – conceder ao representado o prazo de 15 (quinze) dias para, caso queira, apresentar esclarecimentos preliminares, facultando-lhe a juntada de documentos;
[…]
Art. 50. Recebidos os autos, o Relator Presidente da Turma Disciplinar, nos termos do parecer apresentado ou segundo os fundamentos que adotar, proferirá despacho arquivando liminarmente a representação ou declarando instaurado o processo disciplinar.
Parágrafo único. A representação será liminarmente arquivada quando:
I – não preencher os requisitos do artigo 47 deste Regimento;
II – narrar fatos evidentemente atípicos;
III – estiver extinta a punibilidade;
IV – pela análise da prova, não houver justa causa para instauração de processo disciplinar; (grifou-se)
Assim, o juízo de admissibilidade pode resultar em dois desfechos principais: o arquivamento da representação, nos casos em que não se identificam elementos suficientes que demonstrem justa causa para a persecução disciplinar, ou o encaminhamento para as etapas subsequentes, quando se verifica a presença de indícios de autoria, materialidade e tipicidade que justifiquem a continuidade do processo. Esse controle inicial é essencial para assegurar que o sistema disciplinar atue de forma criteriosa e em conformidade com os princípios do devido processo legal.
3. Da representação por autoridade judiciária
No desenvolvimento da função jurisdicional, é possível que o juiz entenda pela existência de supostas irregularidades na atuação do advogado. Nesses casos, a par das possíveis sanções processuais, não cabe ao magistrado adotar qualquer providência de natureza disciplinar, competência exclusiva da OAB.
A Resolução TED nº 1/2025 da OAB Seccional São Paulo, no entanto, amplia e especifica essas exigências, especificamente nos casos oriundos de ofícios judiciais, visando coabar representações genéricas ou desprovidas de fundamentação:
- Narração Detalhada dos Fatos (Art. 1º, I)
A representação deve conter uma descrição precisa dos fatos que, em tese, configuram a infração. Essa exigência visa evitar acusações vagas, assegurando que o TED possa avaliar preliminarmente a plausibilidade da conduta imputada. A ausência de clareza inviabiliza o exercício do direito de defesa e compromete a razoabilidade do processo. - Identificação do Advogado e Número de Inscrição na OAB (Art. 1º, II)
A exigência de identificar o advogado e sua inscrição na OAB não é mero formalismo. Ela assegura que a representação seja direcionada contra pessoa determinada, evitando equívocos ou perseguições indevidas. - Documentação Comprobatória (Art. 1º, III)
A obrigatoriedade de anexar cópias das peças processuais relacionadas à infração visa fundamentar materialmente a acusação. Por exemplo, em casos de alegação de litigância de má-fé, além da juntada de decisões judiciais, é indispensável a remessa das petições iniciais que materializem a suposta conduta transgressional do advogado. - Senha de Acesso aos Autos Eletrônicos (Art. 1º, IV)
A exigência da senha de acesso aos autos, com indicação expressa das folhas relevantes, reflete a adaptação do TED à realidade digital. Permite que os julgadores consultem diretamente os documentos sem depender de tramites burocráticos, agilizando a análise preliminar.
Ainda, o Parágrafo Único do artigo 1º reforça que a senha não substitui a obrigação de cumprir os demais requisitos, evitando que autoridades judiciárias encaminhem representações incompletas sob a justificativa de acesso remoto.
O artigo 2º da Resolução, por fim, estabelece que a falta de qualquer dos requisitos listados implica o arquivamento imediato da representação. Essa medida é crucial para evitar a sobrecarga do TED com processos frágeis ou mal fundamentados, além de proteger advogados de investigações infundadas. Contudo, é importante destacar que o arquivamento não prejudica a possibilidade de reapresentação da representação, desde que regularizada.
4. Da importância do parecer de admissibilidade no processo disciplinar da OAB
O parecer de admissibilidade exarado pelo relator reveste-se de grande importância no processo disciplinar da OAB, uma vez que se consubstancia em verdadeiro termo acusatório, onde os fundamentos de fato e de direito caracterizadores da suposta transgressão disciplinar devem ser apresentados. É no parecer de admissibilidade que ocorre a exposição das condutas objeto da apuração e sua subsunção aos tipos transgressionais de forma a permitir o exercício do contraditório e da ampla defesa. Nesse sentido:
RECURSO N. 25.0000.2022.000177-8/SCA-STU
Recorrentes: J.B.T. e K.M.S. (Advogado: Bruno Ricci Gomes de Souza OAB/SP 370.643). Recorrido: Conselho Seccional da OAB/São Paulo. Relator: Conselheiro Federal Marcelo Tostes de Castro Maia (MG). EMENTA N. 074/2023/SCA-STU. Recurso ao Conselho Federal da OAB. Artigo 75, caput, do Estatuto da Advocacia e da OAB. Acórdão unânime do Conselho Seccional da OAB/São Paulo. Violação ao princípio da correlação entre a denúncia e a sentença – ou princípio da correlação entre a acusação e a condenação ou da congruência (ne eat judex ultra petita partium). Decisão de instauração do processo disciplinar que não delimita condutas disciplinares a serem apuradas, tipificando condutas genericamente, dificultando o exercício da defesa. Anulação do processo, desde a decisão de instauração do processo disciplinar. Declaração da prescrição da pretensão punitiva, de ofício, em consequência da anulação declarada. Recurso provido. 01) Em homenagem ao princípio da correlação entre a denúncia e a sentença – ou princípio da correlação entre a acusação e a condenação, ou princípio da congruência – exige-se que a superveniente condenação guarde a necessária correlação com o fato imputado ao acusado, não sendo possível a condenação por fatos outros sobre os quais não foi oportunizado exercer a defesa. 02) No presente caso, o exercício da defesa restou prejudicado, visto que a instância administrativa da OAB não procedeu à necessária delimitação e fundamentação dos fatos que seriam apurados pela instância disciplinar, não podendo se admitir como válida e suficiente unicamente a documentação e o ofício enviado pelo Poder Judiciário, sendo absolutamente indispensável manifestação expressa da autoridade competente da OAB delimitando a conduta a ser apurada no processo disciplinar e procedendo à tipificação, ao menos em tese, declinando qual infração ético-disciplinar estaria incursa a conduta, a permitir o exercício do contraditório de forma pontual e direta, o que não se verificou dos autos, não restando observada a necessária motivação, ensejando a anulação do processo disciplinar desde a decisão de instauração. 03) Seria o caso, em consequência, de determinar o retorno dos autos à origem, para renovação dos atos processuais desde o juízo de admissibilidade para a instauração do processo disciplinar. Mas, considerando a anulação do processo disciplinar ora decretada e que, retornando-se à anterior e válida causa de interrupção do curso da prescrição quinquenal alcança-se as notificações enviadas aos advogados para a defesa prévia, recebidas há mais de 05 (cinco) anos, destacando entendimento deste Conselho Federal no sentido de que decisão condenatória recorrível proferida por órgão julgador da OAB que venha a ser posteriormente anulada, deixa de existir no universo jurídico e, por isso, não pode produzir efeitos, devendo ser desconsiderada para efeito de interrupção da prescrição quinquenal. 04) Recurso provido para reconhecer o cerceamento de defesa em decorrência da ausência de delimitação das condutas apuradas, na decisão de instauração do processo disciplinar e anular o processo desde a decisão de instauração, e, em consequência, declarar prescrita a pretensão punitiva da OAB. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros da Segunda Turma da Segunda Câmara do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, observado o quorum exigido no art. 92 do Regulamento Geral, por unanimidade, em dar provimento ao recurso e, de ofício, reconhecer a extinção da punibilidade pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva da OAB, nos termos do voto do Relator. Brasília, 20 de junho 2023.Emerson Luis Delgado Gomes, Presidente. Marcelo Tostes de Castro Maia, Relator. (DEOAB, a. 5, n. 1134, 30.06.2023, p. 7).
Sem a existência de indícios mínimos de autoria, materialidade e tipicidade da infração, a representação não deve prosperar, sob pena de incursão no crime de abuso de autoridade daquele que instaura a persecução disciplinar temerária sem justa causa, nos termos da Lei nº 13.869/2019
Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Nesse sentido, relacionado ao processo penal, mas aplicável ao processo disciplinar da OAB:
A justa causa, diga-se, é a necessidade do lastro probatório mínimo para o exercício da ação, ou seja, indícios de autoria e prova da materialidade, normalmente alcançados no inquérito policial ou outros procedimentos apuratórios preliminares. Ora, a exigência de justa causa para apresentação de inicial acusatória é uma das maiores proteções ao cidadão contra o arbítrio do Estado. Isto porque, ter contra si ação criminal (ou até mesmo investigação), é uma enormidade, que retira o sossego e a tranquilidade do indivíduo, impondo-o todas as mazelas que a existência de um processo judicial traz (o conhecido “strepitus fori” ou o “escândalo” do processo). Por isso mesmo, tendo em vista todas as consequências que a existência de um processo contra si traz ao indivíduo, para que haja tal investigação ou ação tendente a responsabilizá-lo, necessária a presença de elementos probatórios mínimos a fim de subsidiar tal investigação, sob pena de importunar a liberdade do cidadão ou vulnerar o estado de presunção de inocência. O Estado não pode acusar ninguém da prática de um crime sem que disponha de um, já conjunto de elementos seguros de prova a embasar tal acusação que o órgão estatal legitimado, o Ministério Público, tem o dever constitucional de indicar os fundamentos jurídicos de suas
manifestações processuais (art. 129 , VIII , da CF ). Por óbvio, tais elementos não podem, para lastrear uma ação penal, ser produto de conjecturas, suposições, opiniões resultantes de palpites, fatos inconclusos ou inferências desprovidas de comprovação mínima, senão antes apreendidos a partir de circunstâncias objetivas, aferíveis independentemente da crença do sujeito. Isso porque o processo penal, por si só, como dito, já se configura um sério e enorme gravame para o acusado, pois, além de atingir o seu status dignitatis, acarreta-lhe, como regra, danos psicológicos e materiais indeléveis, que afetam […] (TJ-SE – Recurso em Sentido Estrito: 0012949-25.2019.8.25.0000, Relator: Diógenes Barreto, Data de Julgamento: 14/05/2019, CÂMARA CRIMINAL) (grifou-se)
Igualmente, o posicionamento de Aury Lopes Jr [1]:
É inegável que o êxito da fase intermediária depende inteiramente da atividade preliminar, de modo que transferimos a ela o verdadeiro papel de evitar as acusações infundadas. Como explica Canuto Mendes, “se a instrução definitiva prova ou não prova que existe crime ou contravenção, a instrução preliminar prova ou não prova se existe base para a acusação”. Seu primeiro benefício é proteger o inculpado. O processo penal é um processo formal de seleção, atuando a instrução preliminar como um sistema de filtros desde onde se vai destilando a notitia criminis até chegarem ao processo penal os elementos de fato que verdadeiramente revistam caracteres de delito, com o prévio conhecimento dos supostos autores (grifou-se)
Por isso a imprescindibilidade de uma representação baseada em provas, sob pena de sua absoluta inépcia.
No juízo de admissibilidade do processo administrativo disciplinar devem ser empregados pela Autoridade administrativa competente critérios aprofundados e detalhados de análise do contexto fático, para cotejá-los com os possíveis documentos e provas que o instruem, objetivando que se evite a instauração de processos com falta de objeto, onde a representação ou denúncia que deram causa aos mesmos são flagrantemente improcedentes ou inoportunas[2]
5. Conclusão
Os critérios de admissibilidade para a instauração de um processo disciplinar pela OAB desempenham um papel essencial na manutenção da ética profissional e na proteção tanto dos advogados quanto da sociedade. O juízo de admissibilidade assegura que apenas as representações devidamente fundamentadas avancem, evitando constrangimentos desnecessários e garantindo que o sistema disciplinar seja utilizado de forma justa e criteriosa.
Com base nas normas do Estatuto da Advocacia e nas resoluções do Conselho Federal, as fases preliminares e o papel do Tribunal de Ética e Disciplina consolidam a transparência e a imparcialidade do processo. Ao mesmo tempo, reforçam a credibilidade da advocacia como profissão indispensável à administração da justiça.
A análise cuidadosa dos critérios de admissibilidade e das etapas que antecedem a instauração do processo disciplinar evidencia a importância de um sistema que deve valorizar o equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais e o respeito às normas éticas.
[1] LOPES JR, Aury. Investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2014, p. 99.
[2] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de Direito Administrativo Disciplinar. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 577.