Introdução
No exercício da advocacia, a relação entre advogado e cliente é pautada por princípios éticos fundamentais, como a confiança mútua e o sigilo profissional. Contudo, surgem dúvidas sobre os limites dessa relação quando o advogado precisa atuar contra um ex-cliente. Seria essa uma infração ética? Quais são os critérios para garantir que o profissional não viole as normas do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)?
Neste artigo, exploraremos as regras e limites para advogar contra ex-clientes, com base no que dispõe o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).(Lei nº 8.906/1994), o Código de Ética e Disciplina da OAB e na jurisprudência. Além disso, apresentaremos exemplos práticos para esclarecer situações em que essa situação é permitida ou proibida, ajudando os advogados a evitar riscos éticos e legais.
O que diz o Código de Ética e Disciplina da OAB?
O Código de Ética e Disciplina (CED) da Ordem dos Advogados do Brasil estabelece os parâmetros fundamentais para a conduta dos profissionais da advocacia no país. Em relação à atuação contra ex-clientes, o CED apresenta diretrizes claras, reforçando a importância do sigilo profissional como pilar essencial da prática jurídica.
Art. 21. O advogado, ao postular em nome de terceiros, contra ex-cliente ou ex-empregador, judicial e extrajudicialmente, deve resguardar o sigilo profissional. (grifou-se)
De acordo com o artigo, o advogado não pode aceitar causas que impliquem o uso de informações obtidas em confidência no exercício de sua profissão em caso anterior. A regra visa evitar situações em que o profissional utilize dados sensíveis compartilhados pelo ex-cliente para obter vantagem em disputas judiciais, o que configuraria uma grave violação ética.
Embora o Código imponha restrições, não há proibição absoluta para atuar contra ex-clientes. O advogado pode assumir causas contra eles desde que:
- Não haja conexão direta com a causa anterior: A nova atuação deve estar completamente desvinculada de assuntos tratados anteriormente.
- Não exista risco de violação do sigilo profissional: Dados estratégicos ou confidenciais do ex-cliente não devem ser acessados ou utilizados em nenhum momento da nova causa.
Esses critérios garantem que o profissional respeite os limites éticos, preservando sua credibilidade e a confiança no exercício da advocacia.
O que diz a OAB
A decisões disciplinares proferidas pelos Tribunais de Ética e Disciplina (TED) da OAB, evidenciam a clara possibilidade de que advogados atuem contra ex-clientes, observados os parâmetros legais. Assim, não se exige qualquer prazo de “quarentena” após atuar em defesa de certo cliente para que atue, eventualmente, em seu desfavor. Deve-se, entretanto, observar o sigilo profissional e essa obrigação é, por óbvio, permanente – ou seja, independe de qualquer prazo.
Nesse sentido, o entendimento consentâneo da OAB:
EXERCÍCIO PROFISSIONAL – ADVOCACIA EM CAUSA PRÓPRIA CONTRA EX-CLIENTE – LIMITES – ENCERRAMENTO DO VÍNCULO – POSSIBILIDADE – LAPSO TEMPORAL – RESGUARDO DE SIGILO PARA SEMPRE. Sob aspecto ético, não há impedimento para o exercício da advocacia contra ex-cliente, não havendo qualquer proibição pelo EAOAB. Ao contrário, ele é permitido tanto pelo seu art. 18, quanto pelo art. 19, quando findo o caso, rescindido o contrato, ou nas hipóteses de renúncia, revogação ou extinção do mandato, e, ainda, no caso de encerramento de vínculo, impondo ao advogado e, no caso, ao ex-comissionado da Fazenda Pública, a obrigação de resguardar o sigilo profissional para sempre. O sigilo profissional é que impede advocacia contra o antigo cliente. A advocacia contra ex-cliente somente é possível em causas diferentes daquelas patrocinadas pelo advogado ao antigo cliente e, mesmo assim, se não houver necessidade ou risco de uso de qualquer dado revestido pelo sigilo profissional e, ainda, se inexistir o risco de vantagens ilegítimas, decorrentes da advocacia anteriormente exercida em favor do antigo cliente, independentemente do lapso temporal decorrido. A quebra do sigilo só é possível, de forma excepcional, por justa causa, como nos casos de grave ameaça ao direito, à vida e à honra ou que envolvam defesa própria, mas sempre em favor da causa, conforme preceituam os art. 34, II, do Estatuto da Ordem e artigo 37 do CED. Precedentes: E-4.204/2012, E-4.187/2012, E-4.042/2012, E-4.276/2013, E4.133/2012, E-4.409/2014 e E-4.519/2015. (Proc. E-4.790/2017 – v.m., em 18/05/2017, do parecer e ementa da Rel. Dra. CÉLIA MARIA NICOLAU RODRIGUES, Rev. Dra. FÁBIO DE SOUZA RAMACCIOTTI – Presidente Dr. PEDRO PAULO WENDEL GASPARINI) (grifou-se)
Processo n. 1101020.00126088/2021-20 – JAIME ENRIQUE SWOBODA (Procs. Cristiano Pretto – OAB/RS 50.223 e Marcelo Bento Monticielli – OAB/RS 67.631) x G.P.D.M. (Procs. JAQUELINE HAMESTER DICK – OAB/RS 53.215, CRISTIANE REGINA BIRK – OAB/RS 55.670, ANA CLAUDIA WEGNER – OAB/RS 91.423, DAIANA ROSA DA SILVA – OAB/RS 72.769, GABRIELLE FRANCO – OAB/RS 95.525, LILIANE RODRIGUES DO NASCIMENTO – OAB/RS 50.904 e RAFAELLA MOHR – OAB/RS 70.857). EMENTA TED Nº 1197/2024: Exercício Profissional. Advocacia contra ex-cliente. Limites éticos. Possibilidade – A advocacia contra antigo cliente somente é possível em causas diferentes das que patrocinou e, além disso, se não houver necessidade ou risco de uso de qualquer dado revestido pelo sigilo profissional, independentemente do lapso temporal decorrido. Não há impedimento ético quanto à possibilidade de o advogado patrocinar causas contra ex- cliente ou ex- empregador, desde que sejam com fundamentos jurídicos diversos das que havia patrocinado a favor dos mesmos. Obedecidos esses limites éticos, não é necessário aguardar qualquer prazo para advogar contra ex-cliente. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos. Acordam os integrantes da Quarta Turma Julgadora – Gestão 2022/2024 do Egrégio Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em julgar improcedente a representação, nos termos do voto do Relator, parte integrante deste. (Porto Alegre, 3 de outubro de 2024. Ronaldo Genisson Bonesso Espíndola, Presidente da Turma. MARCELO FAGUNDES MAURENTE, Relator) (grifou-se)
As decisões dos Tribunais de Ética e Disciplina (TED/OAB) e do Judiciário reforçam que o advogado deve sempre avaliar cuidadosamente os riscos envolvidos em aceitar causas contra ex-clientes, sobretudo em casos que possam gerar prejuízos diretos ou indiretos. Reitere-se entretanto, que o sancionamento do advogado, nesses casos, exigirá a comprovação – sem sombra de dúvidas – de eventual violação ao sigilo funcional:
EXERCÍCIO PROFISSIONAL – SIGILO PROFISSIONAL – ADVOCACIA CONTRA EX-CLIENTE – IMPEDIMENTO – MESMO ASSUNTO EM QUE JÁ ATUOU – OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES SIGILOSAS NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL. Atualmente, o tema do Sigilo Profissional está descrito no capítulo VII do nosso Código de Ética, artigos 35 a 38. Deverá o advogado, como juiz de seus atos, refletir profundamente antes de ajuizar qualquer ação contra ex-cliente. Se houver o mínimo risco de uso de qualquer dado revestido pelo sigilo profissional ou de qualquer vantagem, o advogado deverá recusar a causa. A obrigação de guardar o sigilo é perene. O profissional também está impedido eticamente de advogar contra ex-cliente em causa que tenha relação fática ou conexão com aquelas que já tenha atuado. Precedentes E-4.755/2017. Proc. E-4.805/2017 – v.u., em 18/05/2017, do parecer e ementa do Rel. Dr. SYLAS KOK RIBEIRO, Rev. Dr. ZANON DE PAULA BARROS – Presidente Dr. PEDRO PAULO WENDEL GASPARINI. (grifou-se)
No mesmo sentido, a Justiça, entendendo não haver qualquer ilegalidade – por si só – na atuação do advogado contra ex-cliente, independentemente de lapso temporal:
Indenização. Dano moral. Recorrida que patrocinou causa contra a ex-cliente, recorrente, antes de terminado dois anos da relação jurídica anterior. Ausência de quebra de sigilo, pelo que inexistente ilícito contratual a ensejar reparação por dano não ocorrido. Sentença mantida. (TJ-SP – RI: 10092619020188260664 Votuporanga, Relator: Sergio Martins Barbatto Júnior, Data de Julgamento: 22/07/2019, 1ª Turma Cível e Criminal, Data de Publicação: 22/07/2019) (grifou-se)
Não se descura, entretanto, de entendimento antigo, ultrapassado e ilegal – pois não fundamentado em qualquer legislação -, que estabelecia prazo de “quarentena” para que o advogado pudesse atuar em desfavor de ex-cliente:
Exercício profissional – patrocínio de ação contra ex-cliente – vedação ética – espera de dois anos – sigilo profissional – O advogado deve guardar o lapso de tempo de pelo menos dois anos contados da conclusão do mandato, para advogado contra ex-cliente, e mesmo após esse período, deve respeitar sempre o segredo profissional e as informações privilegiadas que lhe tenham sido confiadas, pois essa é a inteligência da parte final do artigo 19 do CED. Este Sodalício tem aconselhado o prazo de dois anos desde o fim do último mandato, de modo a não caracterizar conduta antiética, como forma de libertar o advogado não da fidelidade e do sigilo, mas do impedimento de advogar contra pessoa para quem prestou serviços (Proc. E-2.652/02 – v.u. em 21/11/02 do parecer e ementa do Relator Dr. Luiz Antônio Gambelli – Revisor Dr. José Roberto Bottino – Presidente Dr Robison Baroni) (grifou-se)
Abusiva e ilegal, portanto, qualquer decisão do TED da OAB que puna o advogado com a exigência de lapso temporal mínimo para que possa atuar contra ex-cliente. Contudo, por mais literal e consagrado que seja esse entendimento, tem-se – ainda hoje e por mais absurdo que pareça – decisões éticas nesse sentido.
Conclusão
Advogar contra um ex-cliente é um tema delicado que exige do advogado atenção redobrada aos aspectos éticos e legais. Embora não seja proibido em todas as situações, a atuação deve estar alinhada ao que dispõe o Código de Ética e Disciplina da OAB, evitando conflitos de interesses e, principalmente, a violação do sigilo profissional.