Concurso público policial militar – suas peculiaridades e nulidades – Parte 1

Você sabe quais são as principais características e nulidades encontradas nos concursos públicos para ingresso nas Polícias Militares do Brasil? Saiba das peculiaridades de cada fase desses concursos e como garantir os seus direitos visando a almejada aprovação e nomeação.

1. Acesso a cargos públicos e seus requisitos de validade

O acesso a cargos públicos no Brasil decorre da prévia aprovação em concurso público, nos termos previstos em lei ( art. 37, II da CF). Busca-se, a rigor, o atendimento do princípio da isonomia no ingresso dos pretendentes ao cargo ou emprego público, ou seja, a igualdade de condições impostas aos concorrentes ( art. 37, caput, CF).

No caso de carreiras policiais militares, em regra, há exigências não previstas normalmente para concursos de outras carreiras, como o exame físico, limites de idade e altura – ou, se previstas possuem, muitas vezes, um grau de exigência relativamente maior, como o exame de saúde ou psicológico.

Inicialmente, há que se observar que as regras do concurso devem ser previstas em lei. Nesse sentido,

1.O princípio da legalidade norteia os requisitos dos editais de concurso público. 2. O artigo 37 , I , da Constituição da Republica , ao impor, expressamente, que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei”, evidencia a frontal inconstitucionalidade de toda e qualquer restrição para o desempenho de uma função pública contida em editais, regulamentos e portarias que não tenham amparo legal. (Precedentes: RE 593198 AgR, Relator Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 06/08/2013, DJe 01-10-2013; ARE 715061 AgR, Relator Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 19-06-2013; RE 558833 AgR, Relatora Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJe 25-09-2009; RE 398567 AgR, Relator Min. Eros Grau, Primeira Turma, DJ 24-03-2006; e MS 20.973 , Relator Min. Paulo Brossard, Plenário, julgado em 06/12/1989, DJ 24-04-1992). 3. O Legislador não pode escudar-se em uma pretensa discricionariedade para criar barreiras legais arbitrárias e desproporcionais para o acesso às funções públicas, de modo a ensejar a sensível diminuição do número de possíveis competidores e a impossibilidade de escolha, pela Administração, daqueles que são os melhores. 4. Os requisitos legalmente previstos para o desempenho de uma função pública devem ser compatíveis com a natureza e atribuições do cargo. (No mesmo sentido: ARE 678112 RG, Relator Min. Luiz Fux, julgado em 25/04/2013, DJe 17-05-2013) […] 19.2. Os parâmetros adotados pelo edital impugnado, mercê de não possuírem fundamento de validade em lei, revelam-se preconceituosos, discriminatórios e são desprovidos de razoabilidade, o que afronta um dos objetivos fundamentais do País consagrado na Constituição da Republica, qual seja, o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV) (STF – RE: 898450 SP, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 17/08/2016, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 31/05/2017)

Para ingresso na Polícia Militar do Estado de São Paulo, por exemplo, a Lei Complementar nº 1.291, de 22 de julho de 2016, define os critérios de admissão.

Não se descura, entretanto, que a própria lei de ingresso à carreira deve guardar compatibilidade com a Constituição Federal, sob pena de que requisitos desproporcionais ou desarrazoados para o desempenho do cargo sejam considerados inconstitucionais (vide ADI TJSP nº 2104784-04.2017.8.26.0000).

Em regra, as decisões tomadas pela banca examinadora ao longo do concurso público, sejam militares ou não, tendem a prevalecer, com base no entendimento firmado pelo STF na fixação do Tema tema 485 de repercussão geral pela impossibilidade de substituição da discricionariedade administrativa pela decisão judicial:

[…]2. Concurso público. Correção de prova. Não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas. Precedentes. 3. Excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame. Precedentes. 4. Recurso extraordinário provido. (STF – RE: 632853 CE, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 23/04/2015, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 29/06/2015)

Ressalte-se, entretanto, que o controle de legalidade (inclusive citado no Tema 485) é atribuição constitucional inafastável do Poder Judiciário, diante de qualquer lesão ou ameaça a direito ( art. 5º, XXXV dc CF).

2. Mérito e legalidade do ato administrativo

Importante, nesse ponto, esclarecer o mérito administrativo e seus limites. Não se desconhece que a lei atribui à administração pública certa liberdade para a prática de determinados atos, outorgando-lhe a análise de conveniência e oportunidade. Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello define a discricionariedade administrativa como:

[…] a margem de “liberdade” que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente (grifo nosso)[1]

Não nos parece, contudo, que haja grande espaço para o mérito administrativo na realização de um concurso público – talvez na definição de questões e suas respostas ou na investigação social – ainda que tudo depende de prévia disposição legal e editalícia.

Ainda nos casos em que se verifique evidente espaço legal para a decisão administrativa, não se impede ao Poder Judiciário a análise da legalidade do ato, inclusive verificando se a opção administrativa foi a que melhor atendeu a finalidade normativa, sob pena de ilegalidade e consequente nulidade do ato. Nesse sentido:

A interpretação do sentido da lei, para pronúncia judicial, não agrava a discricionariedade, apenas lhe reconhece os confins; não penetra na esfera de liberdade administrativa, tão só lhe declara os contornos; não invade o mérito do ato nem se interna em avaliações inobjetiváveis, mas recolhe a significação possível em função do texto, do contexto e da ordenação normativa como um todo, aprofundando-se até o ponto em que pode extrair razoavelmente da lei um comando certo e inteligível (grifo nosso)[2]

3. Erro grave no enunciado da questão

A elaboração de questões e suas respostas consideradas corretas parecem ser a maior evidência, em concursos públicos, da discricionariedade administrativa, ainda que existam limites que, se ultrapassados, resvalam em ilegalidade.

De acordo com as disciplinas e pontos temáticos definidos em edital, a banca examinadora fica livre para definir questões e formular as respostas consideradas adequadas.

Nesse sentido, entende-se inaceitável que eventual controle judicial aponte – segundo o seu ponto de vista e substituindo o mérito administrativo – aquilo que considera mais adequado sem qualquer demonstração efetiva de falha grave na elaboração das perguntas ou respostas.

Ainda que de modo excepcional, o STJ reconheceu a necessidade de anular questão de concurso que, confundindo conceitos, tinha potencial de prejudicar efetivamente os candidatos, ainda que a banca não pretendesse invalidá-la:

[…] Analisando controvérsia sobre a possibilidade de o Poder Judiciário realizar o controle jurisdicional sobre o ato administrativo que profere avaliação de questões em concurso público, o Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, firmou a seguinte tese: “Não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas” ( RE 632.853, Relator: Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 23⁄4⁄2015, Acórdão Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-125 Divulg 26⁄6⁄2015 Public 29⁄6⁄2015). 3. Do voto condutor do mencionado acórdão, denota que a tese nele constante buscou esclarecer que o Poder Judiciário não pode avaliar as respostas dadas pelo candidato e as notas a eles atribuídas se for necessário apreciar o conteúdo das questões ou os critérios utilizados na correção, exceto se flagrante a ilegalidade. Ou seja, se o candidato⁄litigante pretende que o Poder Judiciário reexamine o conteúdo da questão ou o critério utilizado em sua correção para fins de verificar a regularidade ou irregularidade da resposta, ou nota que lhe foi atribuída, tal medida encontra óbice na tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal, exceto se houver flagrante ilegalidade ou inconstitucionalidade. Precedente: ( AgRg no RMS 46.998⁄SC, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 1º⁄7⁄2016). 4. Em relação à questão n. 2 da prova dissertativa, a análise dos pedidos do impetrante revela que se pretende a declaração de sua nulidade ao fundamento de que o enunciado contém grave erro, o que teria prejudicado o candidato na elaboração de suas respostas. Veja-se, portanto, que não se busca, no presente recurso, quanto à questão acima, que o Poder Judiciário reexamine o conteúdo da questão ou o critério de correção para concluir se a resposta dada pelo candidato encontra-se adequada ou não para o que solicitado pela banca examinadora. Ao contrário, o que o ora impetrante afirma é que o enunciado da questão n. 2 contém erro grave insuperável […] e que, por essa razão, haveria nulidade insanável. 5. […] Se a própria banca examinadora reconhece o erro na formulação da questão, não se pode fechar os olhos para tal constatação ao simplório argumento de que referido erro não influiria na análise do enunciado pelo candidato. É dever das bancas examinadoras zelarem pela correta formulação das questões, sob pena de agir em desconformidade com a lei e o edital, comprometendo, sem sombra de dúvidas, o empenho realizado pelos candidatos durante quase toda uma vida. […] Nulidade reconhecida que vai ao encontro da tese firmada pelo STF no recurso extraordinário supramencionado, pois estamos diante de evidente ilegalidade a permitir a atuação do Poder Judiciário(STJ – RMS: 49896 RS 2015/0307428-0, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 20/04/2017, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/05/2017)

Em um próximo texto, analisaremos outras decisões judiciais que tratam de concursos públicos, com ênfase naquelas que são específicas do certame policial militar. Até lá!

#policiamilitar #concurso #policiamilitar #concursopublico #nulidade #prova #concursomilitar #recurso

Bibliografia

[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 1001.

[2] Ibid., p. 1003.

Gostou do conteúdo? Compartilhe

Facebook
Twitter
Linkedin
Pinterest
Rogério Mello

Rogério Mello

Advogado USP, Professor Universitário, Mestre e Doutor, Especialista em Direito Público e Militar.